Carta por um Ceará Agroecológico
O cenário atual em que lançamos o Movimento Ceará Agroecológico é, a um só tempo, desafiante e animador. Desafiante porque vivemos um contexto de crise, multidimensional, combinando elementos econômicos, sociais, ambientais e civilizatórios cujas manifestações se fazem sentir em todas as partes do mundo e chegam igualmente ao Brasil e em nosso Estado, o Ceará.
Esse tempo de crise, simultaneamente, representa um momento de esperança, ânimo e movimentação de todos nós, notadamente na ocasião em que o Governo estadual encontra-se em seu primeiro semestre, lançando os alicerces de uma gestão de quatro anos em um contexto marcado por imensos desafios da crise contemporânea e do legado de gestões estaduais que optaram pelo neodesenvolvimentismo em suas experiências recentes de gestão.
Nesse momento, lançamos o Movimento Ceará agroecológico acreditando que toda crise oportuniza uma superação e é assim que nós, trabalhadores e trabalhadoras rurais, agricultores e agricultoras familiares, assentados/as e reassentados/as da Reforma Agrária, atingidos/as por barragens, acampados/as, camponeses sem terra, pescadores/as, indígenas, quilombolas, organizações sociais e sindicais, movimentos, pesquisadores, estudantes, cidadãos e cidadãs, afirmamos que a agroecologia é nossa melhor contribuição para a superação da crise atual e para a construção de bases sólidas para um projeto de sociedade sustentável e solidária, na medida em que se conforma como uma estratégia de resistência, de construção de soberania, de decisões no território, de sustentação da cultura, de reconhecimento de nossa herança como sociedades agrárias e de construção da autonomia e resiliência frente ao capital. Assim, vemos a Agroecologia como um projeto político-social com base tecnico-científica para toda a sociedade.
No entanto, apesar de vermos no momento atual uma oportunidade ímpar para afirmação da agroecologia, paira no ar um novo risco para o movimento Ceará Agroecológico: o de que a agroecologia se converta no novo “desenvolvimento sustentável”, a nova palavra mágica de onde derivou interpretações as mais distintas, e se tornou um termo de acomodação que pode significar qualquer coisa ou quase nada, fato que abrigou orientações tão díspares e contraditórias como as que eram desenvolvidas pelo Banco Mundial, pela Monsanto ou pelo Greenpeace, sob seu guarda-chuva.
Com essa perspectiva, nosso movimento não pode cair no reducionismo tecnicista de acolher a visão de agroecologia como um simples modelo ou um pacote tecnológico que se possa replicar em qualquer lugar, em qualquer momento e para qualquer um. Há muito poucas práticas que possam ser aplicadas a uma grande quantidade de situações. Dessa maneira, a agroecologia para o Movimento Ceará Agroecológico tem mais a ver com a introdução de novas formas de pensar, de construir e de se relacionar, de mudança de mentalidade, do que com a distribuição de soluções predefinidas.
A agroecologia é uma forma diferente de ver os (agro-)ecossistemas, agrícolas e não-agrícolas, internalizando a pluriatividade e a multifuncionalidade como forma de potencializar a diversidade e complexidade campesina, já que se ocupa de questões relacionadas com quem têm acesso aos recursos e os processos que determinam esse acesso. Por isso, também a vemos como um movimento social. É por isso que se coloca em questão o padrão vigente de apropriação da terra baseado no latifúndio e na grande empresa rural. Reafirmamos, portanto, a atualidade da reforma agrária onde uma reestruturação fundiária leve em conta as realidades socioambientais existentes em nosso Estado e a capacidade de suporte dos ecossistemas; o respeito às formas tradicionais de apropriação e uso dos recursos naturais; as relações sociais de gênero para garantir a equidade do direito à terra; a articulação entre as políticas fundiárias e de gestão ambiental.
O modelo em curso tem provocado a dependência econômica, a exclusão social e a degradação do meio ambiente, através da utilização intensiva de insumos, maquinário, químicos que têm levado a uma contaminação crescente da água, solo, ameaçando a saúde da biodiversidade e da população atingida pelo uso e descarte desses produtos, bem como pelo consumo de alimentos cada vez mais contaminados por agrotóxicos e transgênicos. Cresce a concentração de terras e a privatização da água no Brasil e no Ceará que devem ser revertidos rumo a uma transição para uma perspectiva de sustentabilidade e solidariedade na produção familiar agroecológica.
Reafirmamos, pois, a necessidade do estabelecimento do Limite do tamanho da Propriedade da Terra desenvolvida pelas entidades do Fórum pela Reforma Agrária e Justiça no Campo; defendemos a desapropriação como instrumento insubstituível de justiça agrária e a necessidade de regulamentação do pré-requisito do uso racional dos recursos naturais para o cumprimento da função social da propriedade. Reiteramos a proposta de regularização fundiária das terras das comunidades quilombolas, indígenas, de pescadores artesanais e criação e gestão efetiva de unidades de conservação.
Uma consequência vinculada à concentração da terra é a privatização da água e seus usos intensivos. Considerando a natureza diversificada das necessidades e das formas de uso da água pela produção familiar, a política de gestão de recursos hídricos tem priorizado o uso intensivo da água e têm se mostrado inócua em limitar os usos abusivos e perdulários da água constituindo-se ainda em poderoso obstáculo estrutural à consolidação da proposta agroecológica. As políticas se fundamentam na oferta centralizada de água através de grandes barragens e adutoras, beneficiando quase que exclusivamente os grandes proprietários de terra e gerando degradação ambiental e exclusão social.
Reafirmamos, ainda, os princípios da autonomia, a importância da combinação do saber tradicional e o conhecimento científico para a elaboração conjunta de soluções por parte de organizações camponesas, investigadores e cidadãos que são fundamentais para definir a agroecologia e são a base do que a distingue do movimento da chamada “intensificação ecológica sustentável”.
Dessa maneira, conclamamos ao governo do Estado a favorecer a participação dos camponeses, através de suas organizações, das demais organizações sociais, na formulação e execução de políticas de desenvolvimento agroecológico de forma autônoma e participativa, na medida em que os camponeses possuem conhecimentos inestimáveis sobre os recursos naturais e o meio ambiente; e sua integração a processos dialógicos com o meio científico, tendo permitido sua potencialização, capacidade criativa na inovação agroecológica.
A Agroecologia representa uma opção política e econômica que permite romper com o monopólio das multinacionais sobre os alimentos, oportunizando a todos o direito à alimentação sadia e culturalmente adequada. É o instrumento para afirmar que a alimentação não é uma mercadoria. De maneira crescente a sociedade começa a perceber as vantagens do consumo de alimentos agroecológicos e a valorizar a produção de origem camponesa; que a produção familiar agroecológica não se destina a um nicho de consumidores ricos; ela pode, com políticas públicas adequadas, alimentar toda a população cearense e produzir excedentes exportáveis; que os camponeses, socialmente organizados e com apoio adequado, são capazes de assumir a promoção da sustentabilidade e da solidariedade para formular políticas que o favoreçam.
Defendemos que a agroecologia seja uma abordagem de gestão produtiva dos recursos naturais mais adequadas à perspectiva de relação sustentável e solidária entre sociedade e natureza para a produção camponesa, economicamente viável, ambientalmente saudável, culturalmente apropriada e socialmente justa. Nela, as relações de gênero, geração e etnia, deverão ser, sempre, uma condição essencial para o alcance da sustentabilidade da produção agroecológica camponesa.
Ao Governo Camilo Santana, queremos expor nossa expectativa de que no Estado tenhamos a mesma oportunidade que a sociedade civil organizada teve em nível federal: a de participar da construção da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), instituída em 2012. A PNAPO foi um reconhecimento, de parte do Estado e do governo, do enorme potencial da Agroecologia para gerar trabalho digno no campo, produzir alimentos, sem agrotóxicos, livres da transgenia; e conservar a biodiversidade, os solos e as águas. Acreditamos nessa mesma perspectiva para o Estado do Ceará.
Os avanços são possíveis na medida em que o governo estadual, assim como fez o federal, retome o papel do Estado democrático na implementação de políticas públicas voltadas ao campo e à agroecologia no Ceará, construindo e destinando recursos para políticas públicas claras e efetivas de pesquisação, ensino, ATER, crédito e tecnologias agroecológicas de estoques (água, sementes crioulas, forragens), que tenham um caráter integral e integrador do território.
Apresentamos, finalmente, a proposta de construção de um plano para um CEARÁ AGROECOLÓGICO que se constitui a partir do entendimento de que Agroecologia é um paradigma voltado para o desenvolvimento rural sustentável e solidário, embasado no manejo e redesenho dos agroecossistemas, em perspectiva de análise multidimensional (econômica, social, ambiental, cultural, política e ética), no sentido de apoiar a transição dos atuais modelos de desenvolvimento rural e de agricultura convencionais para estilos de desenvolvimento rural e de agriculturas mais sustentáveis.
A transição agroecológica, enquanto processo social orientado para o alcance de índices mais equilibrados de autonomia, resiliência, produtividade, estabilidade e equidade nas atividades agrárias, sempre estará condicionada e dependente dos graus de diversidade e de complexidade social e ecológica, o que também significa dizer que vai além dos aspectos meramente tecnológicos da produção rural (redução, racionalização e substituição dos insumos).
A transição para agroecossistemas sustentáveis sempre vai depender de que os processos ecológicos emergentes venham acompanhados de um conjunto novo de construção social. Estamos nos referindo, nesse sentido, ao social e ao ambiental como partes de um único processo de co-evolução entre cultura humana e meio ambiente ou evolução integrada entre a sociedade e a natureza, definição que refere também ao conceito de convivência com o Semiárido.
A valorização da agricultura camponesa e da agroecologia implicam então o desenvolvimento de novos valores que fundamentam as relações dos agricultores com os mercados. Ou seja, é necessário trabalhar na construção de uma outra economia, baseada em uma nova ética e em novas relações de trabalho e de gestão dos meios de produção, envolve a afirmação de valores e práticas, distintos da lógica mercantil capitalista. Da mesma forma, a construção de uma agricultura sustentável alicerçada na produção camponesa agroecológica aponta para um processo de mudança social e tecnológica, orientado por outros princípios que não, simplesmente, o aumento da produtividade bruta, mas sim da otimização da produtividade do trabalho camponês.
Outro elemento importante consiste em compreender o espaço rural para além da produção agropecuária. De fato, a concentração fundiária, o modelo de desenvolvimento agrícola excludente e ainda as mudanças climáticas (maior ocorrência de secas) têm provocado a emergência de novas atividades não-agrícolas como alternativas de convivência com o Semiárido.
Por isso, pluriatividade e multifuncionalidade devem ser valorizadas. Elas geram maior integração econômica e social no contexto do desenvolvimento, ampliando ocupações produtivas e geradoras de renda pela remuneração de outros bens e serviços prestados no meio rural, a exemplo da agroindustrialização, do turismo rural, do artesanato ou ainda dos serviços ambientais.
No sentido de avançar na compreensão da convivência com o Semiárido a partir do processo da transição agroecológica, entendendo ambos estes conceitos não como uma volta ao passado, mas sim como um avanço decisivo em direção a um futuro efetivamente sustentável, tanto da agricultura como do desenvolvimento rural, conclamamos o Governo do Estado a adotar uma visão sistêmica na análise e no entendimento dos agroecossistemas como do desenvolvimento rural como um todo.
Por fim, conclamamos o Governo Camilo Santana em promover a articulação do seu secretariado, no sentido de garantir o compromisso do mesmo em prol da construção do Plano Estadual de Agroecologia, em parceria com o Movimento Ceará Agroecológico. Ciência da diversidade e da complexidade, a agroecologia deve ser assumida como Politica de Estado, incorporando numa proposta sistêmica, as pastas do Desenvolvimento Agrário, Educação, da Saude, dos Recursos Hídricos, do Meio Ambiente e ainda da Ciência e Tecnologia, todas integradas.
Seguiremos mobilizados(as) para fazer valer uma política estadual de agroecologia, a adoção de um plano de agroecologia, sua gestão e efetivação.
Movimento Ceará Agroecológico