A parceria entre ONGs e o Governo Federal nos últimos quinze anos democratizou o acesso à água no Brasil com a construção de mais de um milhão e duzentos mil reservatórios nas casas na região Semiárida. A participação da sociedade civil na origem e na implementação do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) é o foco da pesquisa de estudantes em Administração Pública da Faculdade Getúlio Vargas (FGV).
Anna Funaro é estudante de mestrado e veio ao Ceará conhecer a experiência do Fórum Cearense Pela Vida no Semiárido (FCVSA) na elaboração e execução do P1MC. Marina Cano e Luiz Gustavo Perez estão se graduando na mesma área e visitaram Fortaleza por meio do programa Conexão Local, iniciativa que mostra aos universitários como a população pode participar do desenvolvimento econômico e social.
Os três foram recebidos no Esplar, Centro de Pesquisa e Assessoria por Malvinier Macedo, diretora adjunta e Elzira Saraiva, sócia- fundadora da Ong e coordenadora do P1MC durante dez anos. As duas vivenciaram o surgimento do Fórum Cearense Pela Vida no Semiárido (FCVS) e da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), redes estadual e nacional formadas por ONGs e entidades da sociedade civil precursoras do P1MC. O Esplar esteve presente desde os anos iniciais do projeto, de 2001 a 2003, quando sua equipe implementou 1664 cisternas de placas no Ceará com recursos da Agência Nacional de Águas (ANA) e outras 164 com recursos próprios.
"A gente veio aqui para conhecer o programa cisterna mais de perto. Há muitas especificidades no modelo do Ceará, vejo uma articulação exemplar, uma capacidade de levar os interesses do território para o Governo Federal e de se fazer escutar. De alguma forma, vocês estão fazendo dar certo e viemos entender como funciona essa engrenagem, como conseguem se fazer escutar por uma máquina tão imensa como o Governo Federal", afirma a mestranda.
A história do P1MC, desde o projeto piloto há quinze anos com o objetivo inicial de construir 500 cisternas em toda região semiárida, até o cumprimento da meta de um milhão dessas tecnologias durante o governo da presidenta Dilma Roussef, em 2014, foi detalhada no encontro. Segundo Elzira, com a aplicação da verba, o programa fez surgir cadeias produtivas nos municípios cearenses, movimentou o comércio de construção civil para atender o abastecimento, formou e contratou mão de obra. "Houve dinamização da economia local. Os recursos ficavam no local, o pedreiro era do local, a compra de material era em mercados atacadistas locais”, argumenta."Foi preciso criar uma aceitação social da cisterna, do público que ia usar e do mercado que ia nos atender. Não havia fábrica de tampa de cisterna, não existia quem fabricasse placa de identificação”, diz.
Malvinier Macedo lembra também o avanço para a cidadania dos cearenses, já que, para receber as cisternas em suas casas, muitos homens e mulheres pela primeira vez fizeram o Cadastro de Pessoa Física, o CPF. Nos cursos de gerenciamento de recursos hídricos, as pessoas aprendiam como utilizar a cisterna para armazenar água e utilizar durante o período de seca. As cidades escolhidas pelo P1MC tinham o menor Índice de Desenvolvimento Humano do Estado, e, para chegar às localidades distantes e sem acesso, a equipe do Esplar atravessava estradas de terra e até caminhava à pé mato adentro. “Chegamos onde ninguém chegou”, lembra Elzira.
No Ceará, ONGs que atuam no Semiárido, sindicatos e pastorais sociais da Igreja Católica fundaram, em fevereiro 1999, o Fórum Cearense Pela Vida no Semiárido. Malvinier recorda que, na época, as instituições haviam atuado em conjunto em prol da campanha solidária de combate à fome no Nordeste, o Comitê Betinho da Ação da Cidadania, Contra a Fome, a Miséria e pela Vida e optaram por manter a aliança posteriormente.
O Fórum buscava recursos para construção das cisternas para os cearenses e junto à ASA (Articulação Semiárido Brasileiro) pressionou pela criação e continuidade do projeto Um Milhão de Cisternas. O projeto técnico foi elaborado coletivamente por essas entidades, no documento constavam definição de custos, estabelecimento de metas e realização intercâmbios e encontros nacionais.
“O projeto piloto e a fase de transição (P1MC-T) tinham o objetivo de divulgar a tecnologia, formar mão de obra, incentivar a organização da ASA nos estados e municípios para a execução do que viria pela frente.O governo Lula passou a apoiar o projeto grande, já com metas altas, a partir de julho de 2003”, detalha Malvinier.
Os representantes da ASA solicitaram audiência pública em Brasília para aprovação do projeto e fizeram arrecadação para pagar as passagens, lembra Elzira. Na cerimônia, uma agricultora beneficiada com cisterna apresentou pessoalmente ao presidente Lula e a nove ministros, os benefícios do P1MC.
No início, foi necessário criar novas formas de parceria jurídica entre o Governo Federal e as ONGs. Negociando com os Ministérios, a ASA conseguia adaptar as normas às necessidades do terceiro setor e possibilitar a contratação das ONGs para prestação de serviços, que passavam por rigorosas auditorias e prestações de contas. Quando em 2007, houve diminuição de recursos para o P1MC, o Fórum organizou manifestações com cerca de três mil pessoal na Assembleia Legislativa do Ceará. Logo depois, a ASA reuniu vinte mil manifestantes em protesto, na cidade de Petrolina, em Pernambuco.
Os Estudantes
“Estamos acostumados a ver o Estado como coordenador e executor das políticas públicas desde o início à ponta e, quando chegamos ao Ceará, vimos que as ONGs tinham uma capacidade de organização logística de forma mais eficiente. Foi uma surpresa muito grande ver a participação da sociedade civil como executora de políticas públicas”, afirma Luiz Gustavo
Para Marina, impressionou ver “a força que tiveram para criar o programa Um Milhão de Cisternas e pleitear as melhorias. É sensacional, nunca tinha visto uma política pública criada deste jeito, com essa intensidade na participação da sociedade civil”.
Anna Funaro trabalha na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, no setor de planejamento, monitoramento e avaliação de projetos, ela ressalta a peculiaridade do P1MC no Ceará. “Na prática, quantas vezes eu vivenciei políticas públicas em que de fato eu vi a população mobilizada? A gente tem que pensar projetos em que de fato a sociedade civil foi ouvida, e o Ceará foge às regras. Não foi somente um relatório de prestação de contas, é impressionante”, diz
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