Solidariedade entre mulheres indígenas para salvar as vítimas de violência doméstica

30/05/2023 07:54:40
Solidariedade entre mulheres indígenas para salvar as vítimas de violência doméstica

Quando puderam conversar abertamente sobre violência de gênero, as mulheres indígenas falaram.

Assim, as mulheres indígenas Tremembé, Pitaguary, Anacé, Jenipapo-Kanindé, Kanindé, e Tapeba falaram da discriminação, humilhações e agressões que já viveram em seus relacionamentos.

No Seminário Territorial “Violência Doméstica Familiar e o Sistema de Proteção”, promovido pelo Esplar em Pacatuba na Aldeia Pitaguary de Monguba, entre 17 e 19 de novembro, o principal objetivo das 33 participantes foi encontrar alternativas de socorro às mulheres que estão em risco de morte.

As técnicas do Esplar no Projeto Fortalecendo Povos Indígenas: Magnólia Said, advogada e educadora feminista, e Cinthia Moreira, antropóloga, mediaram o debate em que foram questionados os papéis de gênero e as imposições machistas que dão início à violência contra as mulheres.

"A educação que recebi é que tinha que tratar o homem como o centro das atenções, dar tudo nas mãos. A partir disso, já vai gerando a violência e o comodismo. Ele se sente dono da mulher. Hoje, a gente explica a elas para terem autonomia”, diz Antônia Gerliane Adriano da Costa, da etnia Pitaguary de Monguba.

A origem da violência contra a mulher é fundada no patriarcado e surge da recusa dos homens em perder privilégios e aceitar que as mulheres tenham os mesmos direitos, explicou Magnólia. Algumas participantes relataram relacionamentos abusivos, adolescentes contaram ter presenciado atos violentos do pai com mãe e mulheres adultas lembraram dos casamentos em que foram torturadas durante anos por maridos agressores.

Por não terem para onde ir, e o sistema de proteção às mulheres (delegacias, juizados, centros de referência) muitas vezes falhar, as vítimas não conseguem sair da situação de violência. Rosemeire Dantas da Silva, 29 anos, sofreu agressões durante dez anos. Registrou 32 boletins de ocorrência, conseguiu três medidas protetivas e, mesmo assim, o agressor, que a espancava quando bebia, não saiu da sua casa. A irmã dela, Roseane Dantas, não sobreviveu, foi assassinada pelo marido há quatro meses na Aldeia Monguba.

Para evitar a morte de mais mulheres, as educadoras do Esplar sugeriram a criação de grupos de mediação dentro da aldeia e de um núcleo de atendimento às vítimas de violência doméstica nos postos de saúde indígena. Propuseram o intercâmbio de mulheres entre as aldeias, para protegê-las, e a definição de normas para a venda de bebida alcoólica. “É fundamental não deixar o agressor impune, com base na Lei Maria da Penha e dos costumes da aldeia”, afirmou Said.

“Se na época tivesse um grupo de apoio, ou um canto na aldeia seguro pra eu sair da situação, teria me ajudado sim. A gente que é indígena é muito ligada à aldeia, não quer sair. Muitas mulheres indígenas se submetem a viver na violência, não acham esse apoio e não têm para onde ir”, diz Roseane. (Leia o depoimento abaixo)

Na época, ela teve o apoio de sua mãe e de uma parente Pitaguary, Ceiça Alves Feitosa, liderança na aldeia que tem defendido mulheres agredidas. Esta solidariedade é o que muitas precisam para escapar do feminicídio. “Se os vizinhos ou amigos não prestarem ajuda, morre uma pessoa”, afirmou Ceiça.

“É importante criar essa cumplicidade entre nós. Cada uma deveria levar como missão para a comunidade. Dar oportunidade às nossas irmãs, nossas parentes de falar e demonstrarmos que nos importamos com ela”, afirmou Ana Clécia Nascimento, também voluntária na mediação de conflitos em Monguba.

Mesmo com as limitações na aplicação da Lei Maria da Penha, é importante que as mulheres denunciem e façam, elas mesmas, o registro dos casos de violência. “Se vocês não se reconhecerem como vítimas de violência contra a mulher, isso não vai aparecer. Vocês não podem se calar, porque a violência não atinge só uma, mas todas as mulheres”, orientou Magnólia.

Em um momento de espiritualidade, a indígena Nadja Pitaguary conduziu um ritual sobre o “sagrado feminino” para estimular a autoestima das mulheres e o resgate de tradições.

As participantes receberam folderes, documentários e a cartilha “Enfrentando a Violência Doméstica” para refletirem com as outras mulheres da sua aldeia sobre a violência de gênero. Assistiram ao vídeo da Campanha pela Divisão Justa do Trabalho Doméstico e se comprometeram divulgá-las em suas comunidades.

“O hoje é a construção do ontem, do machismo dos nossos pais e avôs, é isso que temos que desconstruir. Os homens devem ter conhecimento que as mulheres não aceitam mais serem submissas”, afirmou Leonice Guimarães, da etnia Tapeba.

32 boletins de ocorrência, nenhuma proteção

Rosemeire Dantas da Silva, 29 anos, Pitaguary de Monguba.

“Eu tive um casamento de dez anos e foi difícil pra mim na época. Depois do nascimento das minhas filhas, começou a confusão dentro de casa, ele bebia e me batia. Eu nunca deixei de denunciar, 32 boletins de ocorrência eu fiz, mas não tive retorno. Mandavam chamar ele lá, conversavam, mas ele continuava e eu tinha que voltar para dentro da minha casa porque não eu não tinha outro canto para ir. 

Quando fiz a medida protetiva, chamaram ele e explicaram que não poderia ligar, nem passar perto de mim. Na segunda semana, ele retornou dizendo que ia entrar na Justiça, porque a casa também era dele. Eu não pude fazer nada, já estava com pavor, pânico dele e tive que aceitar a situação. Eu já tinha procurado todos os recursos que conhecia e não funcionou, então decidi por mim mesma: ‘A partir de hoje ou sou eu ou você´. Se ele não saísse de dentro de casa, ou ele ia morrer ou eu, porque eu não aceitava mais, e foi assim que eu pus um fim. 

Botei mesmo ele pra sair, foi muita briga, confusão, à força. Uma vez que me tranquei dentro de casa com minhas filhas e ele arrombou a porta. Bastava ele provar no álcool. Não tinha uma vez que ele bebesse que ele não me desse uma pisa.

Contava para minha mãe, graças a Deus ela me apoiava. Teve situação de eu levar minhas filhas para a casa dela para não ficarem vendo aquilo. Pra mim, de início, foi difícil, porque eu não achei apoio. Onde eu achei que ia encontrar, que era eu fazer a denúncia, com a medida protetiva, achava que ia dar certo, que eu ia viver em paz e ele ia sair, mas não funcionou de jeito nenhum.

Se na época tivesse uma grupo de mediação, um grupo de apoio, ou se eu tivesse um canto na aldeia seguro pra eu sair da situação, teria me ajudado sim. A gente que é indígena é muito ligada à aldeia, não quer sair de dentro da aldeia. Ainda tem muitas mulheres indígenas se submetem a viver na violência, não acham esse apoio e não têm para onde ir.

As pessoas dizem “você vive isso porque quer”. Não é! Não é porque a gente quer, quem sair da sua casa, da sua aldeia, vai pra onde? Não tem um canto pra gente ir. Eu, como mãe, morria ali com minhas filhas, mas não tive coragem de sair porque pensava nelas. 

Tem muitos iguais a ele dentro da aldeia, durante a semana estão trabalhando, tudo tranquilo, mas chega o fim de semana, eles começam a beber e a bater na gente.

Minha irmã (Roseane Dantas, assassinada pelo marido) também foi uma situação parecida, ele tinha bebido. Cheguei lá uma vez eles estavam brigando, ele estava imprensando o pescoço dela. Eu disse que aquilo não podia acontecer, que ela não tinha que aguentar aquela situação. Falei com ela para irmos na delegacia, mas a sogra dela pediu para não denunciar, para ele não ficar preso. Não tem um registro dela na delegacia. Vamos lutar para que não haja outras Dianas”.

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