Relutei em escrever algo que fizesse coro com a revolta de muitas mulheres sobre esses dois canalhas. Porém, ao escutar ontem, o áudio desse abjeto chamado pelo apelido carinhoso de “Robinho”, a que me recuso pronunciar, minha indignação transformou-se em palavras.
Os crimes praticados pelos dois não foram os primeiros nem serão os últimos que um país que vive sob um véu colonialista, patriarcal e patrimonialista tentará levar ao esquecimento.
Assim como se tentou fazer com os horrendos crimes de estupro praticados pelos colonizadores que aqui estiveram para usurpar partes do nosso território - as mulheres indígenas carregam essas chagas nos seus corpos até hoje – bem como com os crimes perpetrados durante a ditadura militar de 64 nas mulheres presas pelo regime e, mais recentemente, os estupros praticados por soldados brasileiros da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do País (Minustah) no Haiti, deixando um legado de mais de 2 mil vítimas de abusos sexuais, segundo Guerchang Bastia, do partido Encontro dos Socialistas para uma Iniciativa Nacional Nova (Brasil de Fato).
Uma investigação de Universidade Britânica (2020) e dois Estudos liderados por historiadoras do Reino Unido e Estados Unidos (2016/2017) revelam que soldados brasileiros exploraram e abusaram de mulheres haitianas pobres ao longo dos 13 anos em que o Brasil comandou a Missão. Esses crimes jamais foram investigados, pois sequer foram assumidos pelo governo brasileiro.
Comparando os casos do Haiti com o atual, os homens escolhidos para dar “bons exemplos” de acolhimento a uma população em constante sofrimento; de referência para as juventudes a partir de um dos símbolos de nossa cultura, uma medida exemplar da Justiça seria ordenar que os crimes cometidos pelos dois ex-jogadores, os fatos em si (estupro coletivo e estupro individual ) e as atitudes que tiveram a posteriori divulgadas nas redes sociais desqualificando suas vítimas, fossem gravados em outdoors pelas cidades, em livros didáticos e no interior dos espaços governamentais, como atitudes condenáveis. Aqueles que os protegem, o fazem porque sabem que são passíveis de cometer os mesmos crimes e quiçá, saírem impunes. Por isso, justificam as atitudes dos dois e/ou pagam para que se livrem o mais rápido possível do peso da Pena.
Espanta constatar que, sendo crimes hediondos, nem essa caracterização lhes designou a pena estabelecida em Lei. No caso do Daniel, tanto na Justiça espanhola quanto. no Brasil, ela poderia chegar a 15 anos, mas a “proteção” dos poderes lhe designou 4 anos. No caso do Robson, a pena na Justiça Italiana foi de 9 anos, mas no Brasil, poderia chegar a 10 anos, com aumento de 1 a 2 terços, caso algumas circunstâncias fossem consideradas agravantes.
O machismo estrutural é construído através da educação e meios de socialização dos indivíduos, e um Estado patriarcal que o produz pode ser cúmplice por omissão, conveniência e/ou aceitação. Em ambos os casos em questão, seus defensores tentaram, por todos os meios, proteger familiar e socialmente os criminosos e culpabilizar as vítimas das formas as mais perversas, usando todos os artifícios construídos socialmente, sobre o que a mulher pode ou deve fazer, usar, ser, assemelhando-se a uma mercadoria.
Em sua primeira entrevista no La Vanguardia, Daniel diz que a vítima mentiu, mas que a perdoa, transferindo a responsabilidade do fato para ela; em suas inúmeras versões, fala em relação consentida (Uol Esporte); no julgamento, nega mais uma vez o estupro e diz que perdoa a vítima (Jornal da Band). Robson, por sua vez, em entrevista a Record, disse não ter cometido o estupro e que tinha provas, mas nunca apresentou; em audios divulgados pelo Portal UOL, disse que ela estava extremamente embriagada, negando qualquer tipo de violência sexual; o UOL Esporte divulgou em 2023, áudio dele conversando com os amigos sobre o estupro coletivo e as aberrações cometidas com a vítima.
Foucault, em sua obra “Vigiar e Punir“ (1975), já tratava sobre a produção de discursos para a construção de verdades que se instalam nas sociedades. No crime, o julgamento se transforma em peça de teatro, onde se constrói versões sobre a vida de criminoso e vítima, até que o algoz passe a ser visto pelos jurados como a verdadeira vítima.
Foram inúmeros os julgamentos de crimes contra a mulher no Fórum de Fortaleza, em que presenciei cenas que em nada deixariam Shakespeare a desejar. São os papéis estabelecidos pela sociedade sobre o que as mulheres podem, devem fazer, devem entender e devem dizer não, que irão legitimar o poder, a dominação e a opressão do homem sobre a mulher, pois é disso que se trata. A legitimação naturaliza o direito sobre os corpos.
Em ambos os casos, dentro e fora dos Tribunais, tentou-se mostrar a importância que essas criaturas têm para o país, para a sociedade, gerando vitórias para o Brasil e lucros para as corporações que os mantinha, ao passo que as duas anônimas, são apenas mulheres...
Enquanto os fundamentos da cultura machista, próprios do patriarcado, não forem questionados na esfera pública, no judiciário, no parlamento e nas esferas familiar, educacional e social, as mulheres vão continuar submetidas à violência sexual, como um simples traço cultural.
E vocês aí, mães que têm filhas que um dia sairão de suas asas:
Pensem em que medida estão contribuindo para a manutenção da violência, calando e/ou relativizando quando sofrem violência doméstica, quando são agredidas por parentes ou estranhos, não denunciando esses crimes ou não informando-se sobre canais de ajuda. E, principalmente, educando de forma diferenciada filhos homens e mulheres com relação a direitos.
Pensem sobre isso!
Fortaleza, 25 de março de 2024
Magnólia Said - Advogada, Educadora feminista
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