Memórias do Esplar: O surgimento da Rede de Intercâmbio de Sementes

Numa época em que os agricultores e agricultoras do Ceará não tinham sementes para plantar e precisavam trabalhar de graça para conseguí-las, a sociedade civil uniu-se pela criação de bancos comunitários de sementes crioulas.

Iniciada pelo Esplar em 1991, a Rede de Intercâmbio de Sementes, RIS, chegou a congregar mais de 14 mil pessoas em 15 municípios.

Há vinte cinco anos, a luta por acesso a sementes já engajava agricultores e agricultoras nordestinos. Para ter o que plantar, muitos/as tinham de se submeter a trabalhar de graça para os donos das terras ou fazer empréstimos a juros, por isso a Rede de Intercâmbio de Sementes (RIS), surgida em 1991, foi uma importante iniciativa de organização social que mostrou aos trabalhadoras/es rurais de todo o Ceará a alternativa de associar-se a bancos comunitários para ter um estoque de sementes crioulas à disposição para o plantio.

Em 1987, cinco anos antes da fundação da RIS, o Esplar promovia o Programa de Formação de Agricultores em Agropecuária Alternativa. Nos encontros realizados no Centro de Tecnologias Alternativas de Quixeramobim (CETAQ), um espaço de capacitações dirigido pela ONG, os/as participantes relatavam que a falta de sementes era um grave problema para a agricultura familiar. “Na seca daquele ano, os produtores haviam perdido praticamente toda a produção”, registrou o documento da RIS. Nos anos seguintes, com recursos da Confederação Internacional de ONGs OXFAM, O Esplar iniciou o trabalho educativo para valorização e preservação de sementes tradicionais e o abastecimento de 18 bancos de sementes, o primeiro passo para o surgimento da Rede.

Em 1992, aconteceu o primeiro encontro da Rede de Intercâmbio de Sementes, a RIS, com a participação de 49 representantes de movimentos sociais, cooperativas, sindicato de trabalhadores/as rurais e de Dioceses da Igreja Católica nos estados de Maranhão, Paraíba, Ceará, Pernambuco e Piauí.

Mais de 60 Bancos de Sementes já faziam parte da articulação espalhada em várias regiões do Estado. Cearenses de Santana do Cariri, Madalena, Tamboril, Nova Olinda e diversas outras cidades estavam presentes e, ao retornar para casa, podiam transmitir aos seus conterrâneos os conhecimentos sobre a seleção das sementes crioulas, armazenamento e organização dos estoques coletivos. Na época, já era utilizado o mesmo modelo de gestão colaborativa utilizado hoje, em que as pessoas associadas têm o direito de retirar parte do estoque para plantar seus roçados, mas também a obrigação de repor uma quantidade de sementes maior do que a retirada.

Em seus depoimentos, os /as participantes relatavam as adversidades que viviam para trabalhar na agricultura quando não havia os bancos de sementes, e como estavam subjugados aos desmandos dos seus patrões. No I Encontro da RIS, o agricultor da cidade de Parambu, Paulo Siqueira Tenório, afirmou que a falta de sementes era motivo de angústia para os agricultores e agricultoras. “Naquele tempo, não tinha semente nenhuma para plantar. O agricultor tinha que correr para qualquer lado para conseguir, na hora da chuva, plantar sua roça e daí vinha a exploração. Quem não tinha semente era obrigado a pegar, ou não plantava”, disse ele.

Os bancos de sementes em Tauá ajudaram a amenizar os efeitos da seca para as pessoas da região, que vinham passando apuros para sobreviver.  “Quando chovia, ao invés do trabalhador ir para a sua própria roça, ia trabalhar primeiro na roça do patrão e, nessa agonia, vinham quase totalmente perdendo a safra”, Francisco Vieira da Silva afirmou aos seus companheiros e companheiras, no Encontro.

A partir de 1994, outras instituições ingressaram na coordenação da RIS:  Associação Cristã de Base (ACB), Sindicato de Trabalhadores Rurais de Tamboril, Cáritas Diocesana de Sobral, Cáritas Diocesana de Itapipoca, Cooperativa de Senador Pompeu (COSENA ) e a Associação de Desenvolvimento Educacional e Cultural  de Tauá (ADEC). Juntas, as entidades encabeçaram a campanha contra a Lei de Cultivares, proposta em 1996 para permitir às empresas o patenteamento e monopólio de plantas. As práticas solidárias de trocas, guarda e multiplicação de sementes se tornariam ilegais e a sociedade civil denunciou o risco de que as variedades tradicionais pudessem desaparecer. Três anos depois, foi iniciada uma campanha contra os organismos geneticamente modificados, os transgênicos, com intuito de explicar às comunidades rurais os perigos para a Saúde humana e para a biodiversidade. Em 2011, a RIS CE congregava 130 Casas de Sementes que atendiam a cerca de 15 mil pessoas em 15 municípios.

Sementes de luta

No Ceará, as primeiras tentativas bem sucedidas de organização social para a guarda e distribuição de sementes aconteceram em Crateús, na década de 1970, quando o período de secas e o desamparo da população pobre agravou a fome na região. “Os Bancos de Sementes aliviaram a situação de muitos trabalhadores. Os que souberam pegar cinco litros de feijão bom, plantar e ter uma boa safra, devolveram dez litros, e com isso iam vivendo”, afirmou o Padre Bernardo Holmes, vigário de Tauá de 1973 a 1983 (Relatório I Encontro RIS)

O religioso lembra que vivia-se um período de repressão pela ditadura militar a toda manifestação política, mas, no campo, os grupos engajados  nos Bancos de Semente questionavam a exploração, a pobreza e ganhavam força para a mobilização social. “Com o Banco de Sementes, começou a se conquistar espaço para se reunir, conversar, debater problemas e se organizar. Em toda a Diocese, esse espaço dos trabalhadores foi sendo reconquistado. Houve aumento da consciência, nunca se falou só em sementes, se falava na terra, na renda, em quem manda no município, na política, no sindicato”

Fonte: Acervo do Centro de Documentação Esplar

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